“Crunch” é aquele assunto que todo mundo na indústria conhece, quase todo mundo já passou (ou está passando)… e mesmo assim a gente normaliza como se fosse “parte do pacote”.

E aí vem a pergunta incômoda:

até que ponto crunch é inevitável, e a partir de que ponto ele vira só má gestão fantasiada de paixão?

Quero usar esse texto pra organizar alguns pensamentos sobre isso olhando tanto pela lente de quem faz jogo solo/indie quanto pela realidade de quem sonha em trabalhar em estúdio grande, AAA, etc.

Não vou trazer aqui “a verdade absoluta”, mas provocações pra você olhar pro seu jeito de trabalhar.

O que é crunch de verdade (e o que é só fase puxada)

Antes de tudo, vale alinhar o vocabulário.

Muita gente chama de “crunch” qualquer período mais intenso de trabalho. Mas, na prática, tem uma diferença gigante entre:

  • Fase puxada e pontual

Um período de 1 semana, 10 dias, em que você trabalha um pouco a mais por um motivo específico:

  • um evento que surgiu de última hora;

  • uma build muito importante;

  • uma oportunidade de press/streamer;

  • uma data de lançamento que você escolheu encaixar.

  • Você organiza, avisa, negocia com família, se alimenta, dorme o mínimo digno, e depois volta ao normal.

  • Crunch crônico e estrutural

Quando “trabalhar até tarde”, “virar madrugada” e “dar um gás final” deixam

de ser exceção e viram rotina.

Não é mais uma fase, é a forma como a empresa (ou você mesmo) funciona. É quando:

  • o prazo sempre é curto demais;

  • sempre existe um incêndio urgente;

  • ninguém consegue tirar férias direito;

  • bug é resolvido na base do sacrifício, não do processo.

Crunch, na conversa séria sobre game dev, geralmente fala desse segundo cenário: o modo de trabalho onde exploração é travestida de “apaixonado pela visão”.

Por que o crunch virou quase “cultura oficial” em jogos?

Game dev tem uma combinação perigosa de fatores:

  1. Projeto criativo + escopo infinito

Jogo nunca “termina” na cabeça do dev. Sempre tem:

  • mais uma feature;

  • mais um polimento;

  • mais uma animação;

  • mais uma cutscene.

  1. E como é criativo, mexe com ego. A gente quer que fique perfeito.

  1. Tecnologia complexa e imprevisível

Um bug bobo pode levar 3 dias. Uma integração simples pode quebrar build. Estimar prazo em algo tão imprevisível é quase um chute com treinamento.

  1. Mercado competitivo e cheio de incerteza

Muita grana envolvida, pressão de publisher, de investidor, de janela de marketing…

É tentador pensar: “se eu só trabalhar mais um pouco, dá tempo de tudo”.

  1. Paixão como combustível (e desculpa)

Muita gente entra em game dev porque ama jogos. E empresas sabem disso. Paixão é linda. Mas também é algo que pode ser explorado.

Tudo isso junto cria um terreno perfeito pro discurso:

“Estamos todos no mesmo barco, pelo sonho, vamos virar essa noite juntos!” Às vezes isso é genuíno.

Mas, na repetição, vira sistema: o estúdio passa a contar com o crunch como ferramenta de produção, não como exceção.

E no mundo indie, como crunch se manifesta?

Quando a gente fala de crunch, é comum imaginar um estúdio gigante, 200 funcionários, produtor gritando, etc.

Mas a verdade é que indie também entra em crunch e às vezes pior, porque você é o seu próprio explorador.

Alguns jeitos de crunch indie:

  • Trabalhar 12h por dia além do seu job normal porque “só assim o jogo sai”.

  • Nunca ter folga de verdade: fim de semana vira “dia de sprint”.a

  • Emendar meses sem ver amigo, sem cuidar da saúde, sem fazer exame, “porque agora é o momento do jogo”.

  • Culpar a si mesmo se não estiver sempre produtivo, como se descansar fosse um erro moral.

E aqui tem algo sutil:

no indie, muitas vezes não tem salário garantido, nem férias, nem décimo terceiro.

Se você entra em crunch pesado num contexto desses, o custo físico e mental multiplica.

O problema não é “trabalhar duro”.

O problema é virar refém de um ritmo que não é sustentável e, pior, achar isso normal.

“Mas sem crunch, o jogo não fica pronto!”

Esse é um argumento muito comum, e eu entendo de onde vem.

Tem deadline, tem evento, tem conta chegando, tem publisher cobrando milestone. Só que isso esconde uma outra pergunta:

se pra esse jogo existir, ele depende de meses de crunch… será que ele estava mal dimensionado desde o início?

Crunch constante costuma ser sintoma de:

  • escopo inflado;

  • estimativa irreal;

  • comunicação ruim dentro do time;

  • pipeline quebrado.

Ou seja, o crunch não é remédio; é analgésico tomando por cima de uma fratura. Claro, sempre vai existir algum grau de aperto em produção criativa.

Mas quando apertos viram norma, é sinal de que tem decisão estrutural errada sendo tomada, seja na gestão do estúdio, seja na forma como você organiza seus projetos solo.

O custo invisível do crunch

O lado mais perigoso do crunch não é só o cansaço imediato. É o dano que você não percebe na hora:

  • Piora na qualidade do jogo

Cérebro exausto comete mais erros.

O código fica mais frágil, as decisões de design mais impulsivas, os testes mais superficiais.

Você “ganha” horas no calendário, mas perde meses em retrabalho.

  • Criatividade em queda

Ideia boa raramente nasce no 5º café seguido às 3h da manhã.

Ela aparece muitas vezes tomando banho, andando na rua, jogando alguma coisa por prazer.

Crunch rouba esses espaços.

  • Efeito dominó na vida pessoal

Relacionamento sofre, saúde mental despenca, corpo cobra juros depois.

E isso volta contra o próprio projeto: você se afasta, entra em burnout, perde tesão de seguir.

  • Normalização pra próxima geração

Talvez o mais grave: quando crunch vira “cultura”, quem entra novo na indústria já entra achando que esse é o padrão.

E replica o ciclo.

A romantização do “sofrimento como prova de paixão”

Tem um discurso muito perigoso e sedutor:

“Quem quer mesmo trabalhar com games precisa estar disposto a dar o sangue.”

O problema é: onde termina o “dar o sangue” e começa o “deixar de existir como pessoa”?

Paixão é importante.

Mas paixão saudável se mistura com:

  • limites claros;

  • capacidade de dizer “não”;

  • respeito pelo próprio corpo;

  • respeito pelo tempo dos outros.

Tem gente que se orgulha de ter virado dezenas de noites pra lançar um jogo… mas não fala do preço que pagou depois.

Do burnout, da crise de ansiedade, da vontade de largar tudo. E aí cria-se um mito de que “sucesso = sofrimento máximo”. Como se não houvesse outro caminho.

Como evitar virar refém do crunch (como dev solo ou time pequeno)

Não tem receita mágica, mas dá pra criar anticorpos. Algumas estratégias:

  1. Escopo é lei

A regra é simples (e difícil de seguir):

o jogo tem que caber na sua vida, não o contrário. Quando estiver definindo o projeto:

  • corte sem dó o que não for essencial pro core do jogo;

  • pense em versões menores e lançáveis da sua ideia;

  • trabalhe com marcos intermediários (vertical slice, demo, etc.).

Se pra ficar “do jeito que você quer” o projeto exige você deixar de existir por 2 anos… talvez não seja o projeto certo pra esse momento da sua vida.

  1. Estime com humildade

Quase todo dev é excessivamente otimista com prazo. Regra prática clássica:

pegue sua previsão inicial e multiplique por 2 ou 3.

Se ainda assim o plano só funciona com crunch, tem algo errado.

  1. Programe descanso como parte do projeto

Descanso não é prêmio, é infraestrutura.

Agenda de dev deveria ter, além de tarefas de feature, coisas do tipo:

  • “dia off total”

  • “fim de semana sem abrir o editor”.

Não é frescura.

É o que te mantém com energia pra terminar.

  1. Aprenda a dizer “isso não entra”

Uma das habilidades mais valiosas que você pode desenvolver como dev (ou líder) é saber dizer:

“isso é uma ideia ótima, mas não cabe nessa versão”.

O jogo não precisa conter tudo que você consegue imaginar. Ele precisa ter foco o suficiente pra ser lançado.

  1. Não romantize suas próprias maratonas

Às vezes você vai fazer sprint, vai virar uma noite ou outra. A questão é não transformar isso em identidade.

Se você começa a postar “já tô 48h acordado aqui na batalha” como medalha de honra…

sem querer, está reforçando um modelo que depois cobra caro.

E se eu ainda não vivo de jogos?

Tem um outro cenário bem comum:

você trabalha em outra área, estuda, tem família… e tenta encaixar game dev nas brechas.

Aqui, a chance de cair em crunch silencioso é enorme:

  • trabalha o dia todo;

  • chega em casa exausto;

  • se sente culpado se não abre o projeto;

  • vira a noite pra “compensar” o tempo perdido.

Algumas ideias pra isso:

  • aceite o ritmo real que você pode ter hoje

Se são 5h por semana, trabalhe como alguém que tem 5h por semana, não

como se tivesse 40.

  • use o escopo como aliado

Mini jogos, experiências curtas, protótipos.

Melhor um jogo pequeno concluído do que um épico impossível que te destrói aos poucos.

  • não compare sua velocidade com quem está full-time

Freelancer, dev de estúdio, gente sem filho, que mora com os pais… a base é outra.

Seu caminho é o seu.

O papel dos estúdios (e o quanto você tolera)

Se você pensa em trabalhar em estúdio, a conversa fica mais delicada.

A pergunta é: qual o nível de crunch que você está disposto a tolerar e em troca de quê?

  • Tem estúdios que se posicionam claramente contra crunch crônico, criam processos, respeitam hora extra, etc.

  • Tem outros que ainda vivem naquele modo “guerra eterna”, onde todo mês é prazo absurdo.

Quando você for avaliar uma oportunidade:

  • pergunte abertamente sobre gestão de prazo;

  • veja relatos de ex-funcionários;

  • repare se as pessoas têm vida fora da empresa.

Nenhum lugar é perfeito.

Mas existe uma diferença grande entre vezes excepcionais e estilo de gestão baseado em apagar incêndio.

E tem outro detalhe:

quanto mais a indústria for composta por devs que não aceitam crunch como normal, mais pressão existe pra mudança de cima pra baixo.

Dá pra fazer jogo sem crunch nunca?

Provavelmente não.

Assim como não dá pra viver uma vida inteira sem passar por uma fase corrida. A questão não é abolir completamente qualquer noite mal dormida.

É:

  • não estruturar seu projeto contando com isso;

  • não tratar exaustão como virtude;

  • não trocar saúde por um “talvez” de sucesso.

Se o jogo depende de você se destruir para existir, talvez ele esteja caro demais. E eu não falo de dinheiro.

Algumas perguntas pra você se fazer hoje

Pra encerrar, deixo algumas reflexões:

  1. Meu jeito atual de trabalhar é sustentável por 5 anos? Se a resposta for não, tem algo pedindo ajuste.

  1. Eu estou me cobrando como se tivesse 40h por semana livres pro jogo, quando na verdade tenho 5 ou 10?

  1. Que decisões de escopo eu poderia tomar hoje que reduziriam a chance de crunch lá na frente?

  1. Eu me orgulho de maratonas que, no fundo, me fizeram mal? O que isso diz sobre a relação que eu tenho com trabalho?

  1. Se eu fosse orientar um dev mais novo, eu recomendaria pra ele o mesmo ritmo que eu tenho hoje? Se a resposta for “nem ferrando”, por que comigo é aceitável?

Crunch não é um selo de qualidade. Não é uma prova de amor aos jogos.

Na maioria das vezes, é só um jeito caro e doloroso de compensar decisões ruins. A parte boa é que, como dev – indie ou não –, você tem espaço pra escolher:

nem sempre sobre o que vai acontecer, mas sobre como você vai reagir, organizar seu trabalho e se posicionar.

O “sucesso” não é só lançar um jogo.

É conseguir lançar, continuar querendo fazer o próximo… e estar bem o suficiente pra aproveitar o caminho.


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