Quando a gente vive dentro da indústria, é muito fácil acreditar que “tá tudo piorando”.
Toda semana tem notícia de demissão em massa, estúdio fechando, AAA cancelado… e isso mexe com a nossa cabeça. A sensação é de que fazer jogo ficou impossível.
Mas, ao mesmo tempo, se você olhar com calma para o ponto de vista de um dev solo ou de um time pequeno, a história é quase o oposto: a gente tá vivendo uma era de ouro do game dev e a maioria dos devs nem percebe.
Recentemente saiu um artigo no blog How To Market a Game defendendo exatamente o que eu vinha falando há alguns meses já: que os indies estão no meio de um momento raro em que o que é “menos caro” e mais rápido de produzir e é exatamente o que os jogadores estão morrendo de vontade de comprar.
Eu li aquilo e pensei: “ok, essa conversa precisa chegar em mais devs BR”.
Então vamos falar sobre essa tal era de ouro, o que ela significa na prática, por que ela é uma oportunidade bizarra pra quem quer viver de jogos… e também os riscos e auto enganações que vêm junto com esse cenário.
O que é, afinal, “era de ouro do game dev”?
Quando alguém fala em “era de ouro”, a gente tende a imaginar um passado romântico:
Os tempos do SNES e Mega Drive
A fase do Flash
O início da App Store
A transição do pixel art para os primeiros jogos 3D
A explosão dos primeiros indies que furaram a bolha como Braid, Fez, Super Meat Boy…
Mas a questão é:
A era de ouro não é só “lá atrás.” Ela é agora, só que sob outra forma.
Estamos em um período em que os gêneros que o público mais quer jogar são, coincidentemente, os gêneros mais acessíveis de produzir para devs pequenos.
Não é que o game dev “ficou fácil” (não ficou). Mas, pela primeira vez em muito tempo:
Você não precisa de gráficos avançados para ter chance de vender muito bem;
Você não precisa de um projeto de 5 anos para entrar num gênero que está bombando;
O mercado tá pedindo jogos que aceitam uma boa dose de “jank” (gíria comumente utilizada para indicar algo estranho ou mal-acabado), desde que o jogo seja divertido pra caramba.
Essa combinação é muito rara.
O tipo de jogo que está em alta (e por que isso é ótimo pra você)
O artigo traz uma lista de “micro-gêneros” que estão vivendo essa grande fase:
friend-slop (jogos coop caóticos/engraçados com amigos, tipo “Lethal Company”, “Chained Together”, etc.);
idle/incremental;
horror em várias subcategorias (horror coop, horror cassino, e etc.);
simuladores mais simples, principalmente de loja/negócio;
rage games (aquele sofrimento gostoso que rende clipe pra streamer);
autobattlers;
e talvez uma “segunda geração” de jogos estilo Vampire Survivors.
O ponto não é decorar a lista.
O ponto é perceber a característica em comum:
São jogos focados em loop de gameplay forte, muitas vezes com arte simples, feitos relativamente rápido, que explodem muito mais pelas sensações que geram do que pela “perfeição técnica”.
Isso é ouro na mão de um dev pequeno:
Você pode testar uma ideia em meses, não em anos;
Dá para errar mais vezes com um custo menor, em vez de colocar todas as fichas num único “projeto da vida”;
E, se acertar a mão, é possível alcançar números que mudam a sua carreira com um jogo que não consumiu todas as suas reservas de energia mental.
Fato curioso: a volta do “jogo feio, porém viciante”
Outra coisa interessante que está comum:
Essa era de ouro é muito menos sobre gráfico bonito e muito mais sobre diversão antes de polimento.
Esse movimento começou a ficar muito nítido com Vampire Survivors:
jogo visualmente simples, cheio de elementos “toscos”, gráficos questionais se você olha com olhar AAA… mas com um loop tão bem amarrado que virou vício mundial.
O mesmo vale pra vários friend-slop: muita animação travada, glitch, coisa atravessando cenário, hitbox esquisita. E, ainda assim, dezenas de milhares de jogadores simultâneos.
É óbvio que isso não é desculpa pra lançar algo injogável. Mas é um sinal claro de que:
Se o jogo é realmente divertido,
Se ele rende clipe, gargalhada, conversa,
Se a experiência central é forte…
…o público perdoa um monte de imperfeição, principalmente quando sente que está vendo algo novo dentro de um gênero que ama.
Você não precisa ser a Nintendo.
Mas precisa ser intencional: cutucar o tipo de sensação que aquele público está buscando agora.
Caçar trends é feio? Vamos conversar sobre isso
Uma crítica comum quando se fala em aproveitar esses gêneros em alta é:
“Ah, mas isso é só correr atrás de tendência. Eu quero fazer algo original, autoral, minha obra-prima”.
É simples: Os jogadores querem esses jogos, estão pedindo por eles, e alguém vai precisar fazer. Por que não você?
Eu, pessoalmente, vejo assim:
Criar jogos em gêneros trends como modelo de negócio e aprendizado:
Você escolhe um micro-gênero em alta, faz um projeto de escopo controlado, lança rápido, mede resultado, aprende marketing, produção, lançamento, pós-lançamento… e usa isso para financiar e maturar projetos mais autorais lá na frente.Jogo dos sonhos como projeto de longo prazo:
Aquele projeto gigante, com lore enorme, mil sistemas complexos é caro, não só em dinheiro, mas em energia de vida. Faz mais sentido tratá-lo como algo que você vai construindo com o tempo, apoiado em experiências menores que validam que você sabe botar jogo no mundo e vender jogo.
O erro, na minha visão, é tentar misturar os dois:
“Vou fazer um jogo ultra autoral de um gênero que ninguém provou ainda que vende, com escopo de AAA, sozinho, na primeira tentativa”.
Isso não é “arte”; é suicídio de carreira em muitos casos.
A grande pergunta que você pode se fazer: “Esse próximo projeto é laboratório ou é tese?”
Laboratório = jogo rápido para aprender, testar mercado, construir base.
Tese = seu manifesto autoral, depois de ter rodado muito laboratório.
A armadilha do viés de sobrevivência
Outra preocupação justa é o famoso viés de sobrevivência.
“Claro que parece era de ouro quando você só olha pros casos que deram certo. E os 500 jogos que ninguém viu?”
Isso não invalida o estudo de quem deu certo.
A ideia é:
Em vez de só analisar quem fracassou e concluir “é impossível”,
você olha para quem conseguiu resultado em condições parecidas e tenta entender:
O que eles fizeram diferente?
Em que momento entraram no gênero?
Quanto tempo demoraram?
Como usaram marketing?
Como posicionaram o jogo na Steam?
Isso não garante nada, óbvio.
Mas aumenta muito a sua chance de tomar decisões menos cegas.
Tem jogo com centenas de milhares de wishlists que fracassaram no lançamento por precificação errada, falta de conteúdo, público errado, promessa errada, etc.
Ou seja:
até na era de ouro tem como cavar um buraco e cair dentro.
O que torna esse momento especialmente bom pra devs BRs
Agora, trazendo para a nossa realidade:
Por que eu olho para tudo isso e penso que, pro Brasil em especial, esse momento é muito poderoso?
Alguns motivos:
1. Custo de vida x dólar x Steam
Viver em real e vender em dólar/euro, mesmo com todos os desafios, ainda é uma alavanca absurda. Um jogo que fatura “ok” em padrões globais pode ser uma virada de vida aqui.
2. Ferramentas e conhecimento nunca foram tão acessíveis
Game Engines como Unity, Unreal, Godot…
Assets pagos e gratuitos pra acelerar arte, música, VFX.
IA ajudando com brainstorming, texto, até prototipagem (com cuidado, claro).
Conteudo educacional de fácil acesso em português (diversos vídeos podem ser encontrados em redes sociais, cursos online, faculdades e YouTubers devs compartilhando seus resultados, erros e acertos)
3. Jogadores estão mais abertos a jogos de “cara simples”
Isso nivelou um pouco o campo pra dev que não tem acesso a um time gigante de arte, desde que você saiba compensar com estilo, personalidade e diversão.
4. Comunidade local crescendo
Mais eventos, mais devs, mais estúdios, mais gente compartilhando conhecimento, mais cases brasileiros aparecendo. Isso cria um ambiente onde é mais fácil acreditar que dá pra chegar lá.
Junta tudo isso com as tendências atuais de gêneros… e você tem uma janela de oportunidade que não dá pra ignorar.
O lado B da era de ouro
Ok, até aqui eu pintei um cenário otimista. Mas seria desonesto dizer que é só flores.
Alguns cuidados:
1. Saturação é real
Sempre que um gênero começa a bombar, vem a enxurrada de clones. O segredo é justamente entrar rápido, antes do pico de saturação.
Se você decide fazer um friend-slop daqui a dois anos, talvez o público já tenha migrado para outra onda. A janela não é eterna.
2. Ansiedade
Quando a gente fala “era de ouro”, o cérebro pode ouvir:
“Se você não lançar um jogo em 6 meses você perdeu a vida.”
Calma.
O objetivo não é te jogar num buraco de ansiedade produtiva, mas te tirar daquela paralisia de “vou passar 7 anos lapidando minha obra-prima na sombra”.
Existe um meio-termo saudável e é nele que você precisa mirar.
3. Jogo rápido ≠ jogo descuidado
Tem uma diferença enorme entre:
Reduzir escopo conscientemente e focar no que importa;
Jogar qualquer coisa injogável na Steam “só pra ver se cola”.
O público pode perdoar jank, mas não perdoa desrespeito.
Se você for entrar numa onda, entre levando a sério o que aquele público valoriza.
Tá, e o que eu faço com tudo isso na prática?
Vamos para a parte que importa: como transformar essa visão em ação.
1. Escolha um micro-gênero para estudar de perto
Em vez de pensar “vou fazer um jogo coop qualquer”, tente:
“Vou estudar friend-slop: quais são os principais hits, o que eles têm em comum, como é o pacing, como funcionam os momentos de clipe, como os jogadores usam chat/voz, quanto tempo dura uma run…”
Ou:
“Vou estudar idle/incremental: qual é o loop de recompensa, quanto tempo leva para desbloquear sistemas, como a interface comunica crescimento…”
Ou:
“Vou estudar horror coop: como eles criam tensão com pouco orçamento, como usam áudio, como configuram objetivos simples que geram caos…”
Não é copiar.
É entender o design por trás da onda. Seja analítico!
2. Planeje um projeto “de 1 a 6 meses” com escopo honesto
Uma ideia que eu gosto muito é:
“pare o que você está fazendo e faça um jogo rápido para lançar em 1–6 meses.’’ Se isso faz sentido pra você agora, pense:
Qual o loop central que eu quero que o jogador repita?
Qual o mínimo viável de conteúdo pra esse loop funcionar?
Quais sistemas eu posso cortar sem dó?
Qual arte eu consigo produzir (ou comprar) sem travar?
E monte um plano que caiba num tempo curto de desenvolvimento.
3. Trate esse jogo como laboratório de marketing
Essa parte é crucial.
A era de ouro não é só de produção, é também de aprendizado de marketing. Use o projeto para:
Criar uma página da Steam cedo;
Testar thumbnail, título, tags;
Lançar demo ou playtest;
Aprender a ler métricas básicas (CTR, wishlist, etc.);
Entender o que faz streamers se interessarem pelo seu jogo;
Participar e aprender mais sobre o Steam Next Fest.
Mesmo que o resultado financeiro não seja gigantesco, o conhecimento acumulado vale ouro pro próximo.
4. Use esses jogos rápidos para comprar tempo pro seu “jogo dos sonhos”
Se der certo, um pequeno hit pode:
Financiar meses/anos de desenvolvimento do seu projeto autoral;
Te permitir trabalhar menos em job paralelo;
Construir uma fanbase que vai te seguir para o próximo projeto.
Mesmo que não seja um mega hit, você já sai com:
Mais experiência prática,
Mais contatos,
Mais casca.
Isso te coloca em outro patamar para decidir se e como você vai atacar aquela ideia grande que te acompanha há anos.
Perguntas pra você se fazer hoje
Se você chegou até aqui, quero te deixar com algumas perguntas pra cutucar mesmo:
1. O meu projeto atual é laboratório ou tese? Eu estou tratando ele como o quê?
2. Se eu tivesse que escolher um micro-gênero da “era de ouro” pra explorar em 6 meses, qual seria? E por quê?
3. O que me impede hoje de tentar um projeto menor e rápido? É tempo? Ego? Medo de “me vender”? Falta de clareza?
4. Eu realmente preciso que meu próximo jogo seja “o jogo da minha vida”? Ou posso enxergá-lo como mais um passo na minha trajetória de dev?
5. O que eu posso fazer nos próximos 30 dias pra me aproximar dessa mentalidade de era de ouro? Uma game jam? Um protótipo? Um estudo profundo de um gênero específico?
Fechando: o que significa aproveitar a era de ouro
Pra mim, aproveitar essa era de ouro do game dev não é:
Lançar qualquer coisa correndo;
Entrar em todos os hypes ao mesmo tempo;
Viver escravo de gráfico, de tendência ou de opinião do Twitter (X).
É outra coisa:
É aceitar que o mercado está oferecendo uma janela rara para devs pequenos;
É usar essa janela para aprender mais rápido, errar mais barato e vender mais cedo;
É largar a fantasia romântica do sofrimento eterno em um único projeto e começar a pensar em carreira como algo iterativo;
É entender que “caçar trends” pode ser ferramenta, não prisão.
A era de ouro não vai durar pra sempre.
Nem essa, nem nenhuma. Todos os ciclos mudam. A questão não é “será que essa era existe mesmo?”.
A questão é: o que você vai fazer enquanto ela existe?
Se esse texto te cutucou de algum jeito, faz o seguinte:
pensa num micro-gênero, escolhe uma ideia ridiculamente simples e responde (ou anota pra você mesmo):
“Se eu tivesse que lançar algo em 4–6 meses, o que seria?”
Talvez aí esteja o começo do jogo que vai te colocar, de fato, vivendo essa era de ouro e não só assistindo ela passar pela timeline.
Até a próxima edição Dev!

